Uma erosão que precisa ser reparada

O Quinze é o romance mais popular de Rachel de Queiroz, que o escreveu e publicou em 1930, portanto com apenas 20 anos de idade. Sem ser autobiográfico, o romance se apoia no êxodo provocado pela seca de 1915 na região de Quixadá, no Ceará, e se organiza em torno da personagem Conceição, que, normalista como Rachel, tem ideiais feministas e encara a luta pela vida com desassombro e iniciativa.

Por Jeosafá Fernandez Gonçalves*

Em meio à seca que devasta o sertão, Conceição reflete sobre a vida, o papel da mulher numa sociedade extremante patriarcal, a solidariedade humana e as decepções amorosas.

Nesse romance, a crítica social vem acompanhada de um sutil lirismo que procura situar os sentimentos da mulher em relação ao homem amado, a partir do confronto entre o idealismo romântico dos primeiros impulsos afetivos e o juízo um tanto amargo da reflexão crítica:

“A verdade é que ela [Conceição] era sempre uma tola muito romântica para lhe emprestar essa auréola de herói de novela (...).

Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera Machado [de Assis]... Nem nada do que ela lia.

Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado...

Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida.

O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante” (Queiroz, Rachel de. O Quinze. 86 ed. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 2009).

Essa abordagem, que articula à temática regional certa demanda psicológica sob um ponto de vista feminista, atraiu sobremaneira a atenção dos literatos da época e dos leitores que, ainda hoje, passados mais de 80 anos da publicação da primeira edição, continuam a ler nesse romance uma crítica social bastante atual, pertinente e elaborada artisticamente com primor.

A literatura de corte social, chamada engajada, teve ampla repercussão por todo o mundo durante o século 20, particularmente até fins da década de 1950. Eventos sociais e históricos significativos tiveram papel relevante nessa onda gigantesca de produção literária, entre os quais a Primeira e a Segunda Guerra mundial, o crash da Bolsa de Nova Iorque e, com destaque, a Revolução Russa de 1917.

A tradição realista, que lançara no Ocidente as bases da crítica social na literatura em fins do século XIX, encontrou nesses eventos combustível para desencadear um portentoso movimento artístico por todo o globo.

A indignação que move Rachel de Queiroz nesse período é irmã daquela que nos EUA impulsiona a obra de John Steinbeck e John dos Passos e, na Rússia, a de Máximo Gorki.

Articular a qualidade literária com a necessidade de se comunicar com um público mais numeroso é característica comum dos autores que, como Rachel, ousaram abordar francamente os problemas sociais em linguagem compreensível aos setores retratados ficcionalmente nos próprios romances.

A sinceridade dos autores da literatura engajada os levou a se envolverem em compromissos muito para além do exigido pelo ofício de escritor. Com efeito, não houve entre eles um que não tenha participado concretamente de movimentos sociais e políticos em defesa da justiça, da democracia, da paz e mesmo do socialismo.

Paul Éluard e Hemingway cerraram fileiras em defesa da república espanhola, sitiada pelo fascismo de Franco, que deixou no seu rastro de destruição uma montanha de cadáveres, entre os quais o de Lorca, poeta amigo dos ciganos, da tradição popular e da mesma república. No Brasil, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz foram perseguidos, presos e tiveram seus livros queimados, juntamente com os de José Lins do Rego, entre outros, em praça pública.

O acirramento da luta social e política levará a autora, tanto quanto outros autores de sua geração, a se aproximar do Partido Comunista do Brasil.

Como é sabido, essa relação sofreu abalos por muitas razões, uma das quais, sem dúvida, motivo de profunda autocrítica do próprio Partido ao longo dos anos, o viés dirigista no tocante à produção artística.

A interferência indevida no processo de produção artística e intelectual, sob a forma de orientação dogmática ou simplesmente de censura, criou um fosso entre a vanguarda política e a vanguarda artística que até hoje perdura.

Tanto quanto uma quantidade significativa de artistas e intelectuais, Rachel de Queiroz rejeitou essa interferência e, com isso, o próprio Partido. Injunções históricas, tais como o XX Congresso do PCUS e o Relatório Kruschev, com suas devastadoras repercussões pelo mundo e pelo Brasil, terminaram por sacramentar um divórcio que é danoso até hoje para artistas e intelectuais engajados e para o próprio Partido.

Da minha parte, acredito que um novo engajamento é possível e necessário em face do atual estágio de brutalidade do capital contra o mundo do trabalho, tanto quanto considero possível e necessário a intensificação o diálogo franco entre os comunistas e o mundo das artes e da produção intelectual em bases co-pactuadas, nas quais a liberdade de expressão e o exercício da crítica garantam a independência de uns e de outros, a mútua estimulação e a possibilidade de restauração de vínculos que se erodiram por motivos significativos, mas que não têm mais razão para assim permanecerem.

A obra de Rachel de Queiroz venceu os tempos duros, o Partido Comunista também. Então, ambos podem se ler com novos olhos, menos duros.

* Jeosafá Fernandez Gonçalves é escritor, doutor em Letras e doutorando em Educação pela USP


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