Antes do ECA, ´perambulação´ e furto geravam as internações

A visão dos gestores e juízes, antes de 1990, era de que os meninos seriam ´irrecuperáveis´; tinha-se medo ou pena
Andar pelas ruas sem rumo certo, perambular por aí com atitudes ditas "suspeitas". Este era um dos principais motivos de internação de meninos e meninas antes da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aprovado há 22 anos, em 1990. Vivia-se, à época, sob as "rédeas" autoritárias do Código de Menores de 1979. Pobreza era causa certa para a institucionalização. Prendia-se por medo ou pena.


Meninos internos, nos anos 80, na Fundação do Bem Estar do Menor do Ceará (Febemce), sofriam com o estigma de crianças "perdidas", sem futuro, eram tirados da família tendo como motivo maior a pobreza FOTO: HELDER FREITAS/ ARQUIVO (06/10/1982)
"Testemunhei, naquele e nos outros anos que antecederam a sanção do ECA, centenas de crianças cujos pais e familiares não tinham condições materiais para assegurar-lhes o direito à saúde, educação, alimentação e moradia digna serem afastados do convívio familiar e levados pelo braço do Estado para centros educacionais ou creches. A pobreza era qualidade-condição apriorística de condenação", detalha a assistente social, Rejane Batista, técnica da Fundação do Bem-Estar do Menor do Ceará (Febemce) nos idos dos anos 80.

Aos garotos denominados, antes de 1990, como "menores autores de infração penal", restava a falta de estrutura dos centros, frieza das celas, descrença no futuro e na reintegração.

Mas o que mudou com o ECA? Hoje, no texto da legislação, sumiu a "doutrina da situação irregular" da tutela e entrou o discurso da proteção integral, reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Já no cotidiano, no entanto, fica a sensação de descompasso entre lei e prática. A legislação parece ter avançado, mas mentalidades também?

Para Rejane Batista, também doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), seria ideal que o direito buscado e conquistado no plano jurídico do ECA se enraizasse, tivesse um solo que o alimentasse, prática que o cristalizasse.

"O reconhecimento de todas as crianças e todos os adolescentes como sujeitos de direitos, para além do plano legal, ainda não se efetivou. A garantia à proteção integral ainda não é realidade", detalha a assistente social. Ela cita, por exemplo, crianças que estão fora da sala de aula, sem acesso à saúde, moradia, esporte, lazer e dignidade.

Polêmica

Uma polêmica vez ou outra volta à tona: a de que o ECA hoje estaria sendo, sim, super protetor com os meninos, dando até regalias em excesso. Mas Rejane questiona: a justeza da lei choca, incomoda, inquieta; a crueza do cotidiano, não, por que? "Não seria prudente pensar que estamos a viver realidade inaceitável que condena milhões de vidas a um legado de miséria e expropriação da dignidade?", indaga.

Para ela, não é aceitável dizer que o ECA estaria longe do realizável; na verdade, a realidade - cheia de negações de direitos - é que estaria, sim, fora da lei.

Neste contexto de contradições entre legislação e prática - tanto do Código de Menores de 1979 e do ECA de 1990 - algo chama a atenção: a manutenção do valor de descrença com esses meninos ditos como infratores.

Para a socióloga e uma das primeiras presidentes do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente (Comdica), Graça Gadelha, gestores e juízes ainda olham para essas crianças como figuras perdidas, "irrecuperáveis". "Com ou sem ECA, a visão permanece. Temos que apostar mais neles, acreditar que são possíveis de mudança. Tudo isso passa pelo afeto, solidariedade e garantias mil".

IVNA GIRÃOREPÓRTER

"A criança deve ser um sujeito de direitos"
Ângela Pinheiro
Professora integrante do Nucepec/UFC

Como avaliar os 22 anos do ECA?

A lei significa instrumento importantíssimo, diria mesmo indispensável, na garantia de tais direitos para tais atores sociais. Saímos, em termos legais, do âmbito do favor, da vontade de um ou outro gestor, para âmbito da reivindicação, da prerrogativa legal, na consecução de ações do poder público, sociedade civil e família, na garantia, proteção e defesa.

O que deveria mudar para que a lei fosse realmente cumprida?

Reconhecer cada criança e cada adolescente como sujeito de todos direitos, requer transformações imensas na sociedade, marcada por abismos na distribuição de renda e no acesso a serviços e bens. Requer, outrossim, mudanças de paradigmas na gestão, incluindo participação da sociedade civil na tomada de decisões.

Quais as atuais ameaças ao ECA?
Há uma ameaça grande: ele ainda não ter sido cumprido numa proporção que pudéssemos avaliar a sua eficácia, falhas, lacunas e méritos.

Ivna GirãoRepórter

Inspirado em tratados internacionais
Se a Lei nº 8.069/90 - conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - nos parece algo tão original, inédito, ela foi inspirada e "copiada" de diversas experiências relevantes, entre elas, a Convenção Internacional de Direitos Humanos, 1989. Além disso, é notória na construção textual, apoio e luta de diversos movimentos sociais nacionais que demandavam mudanças e novas práticas de proteção.

Segundo Wanderlino Nogueira Neto, membro da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced) e figura ativa na época de criação do Estatuto, garantias como dignidade, liberdade, igualdade e diversidade foram logo disputadas para fazer parte dos valores presentes nessa lei.

"O ECA reconhece, hoje, as crianças e os adolescentes como titulares de direitos ainda em processo de emancipação, como pessoas em situação peculiar de desenvolvimento. Não apenas incapazes a serem cuidados, protegidos, meros ´objeto de tutela´. Isso foi um grande avanço", diz. Questionado se, passados 22 anos, a lei ainda estaria adequada, seria considerada avançada, ele pondera que, em muito pontos, sim, entretanto não propriamente "avançado", mas adequado à realidade social e político-institucional atual. "Mas, em outros, esta realidade está exigindo que o Estatuto avance ainda mais, isto é, seja complementado e aperfeiçoado", comenta.

Tanto que, segundo ele, muitas mudanças já foram feitas no Estatuto nestas duas últimas décadas e algumas normas novas - leis, decretos, resoluções, portarias - até avançaram em determinados pontos, como o direito à convivência familiar e comunitária, direitos afetivo-sexuais e proteção no trabalho, por exemplo.

Ameaças

Sobre o que chamou de "constantes ameaças", como a tentativa de redução da maioria penal, reforço na punição de adolescentes em conflito com a lei e o cenário de aumento da criminalidade, Wanderlino Nogueira contesta perguntando: quando existe uma realidade perversa é preciso uma lei mais perversa ainda para manter a situação de perversão ética, social e jurídica?

"No País, algumas forças conservadoras - ditas hegemonicamente capitalistas, elitistas, racistas, machistas e principalmente adultocêntricas - consideraram o Estatuto ´excessivamente´ avançado. Uma opinião tola e manipuladora, pois ele não vai além da Convenção Internacional, que, por sua vez, já foi acolhida pelo maior numero de países do mundo até hoje", explica.

Novos padrões

Para Rita de Cassia, atual coordenadora da Proteção Social Especial de Média Complexidade da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), houve muitos avanços, nos anos 90, com a criação do ECA, principalmente em termos de gestão, mudanças de políticas públicas.

"Rompemos com o modelo de ver a pobreza de modo isolado, como causa maior de internação e de tutela do governo. A lei quebra isso e constrói novos padrões de responsabilidade, dividindo os cuidados da criança entre Estado, família e sociedade".

Se, com o Código de Menores de 1979, prática comum era tirar o garoto da guarda dos pais, o ECA pensa uma diretriz ampla de política de assistência social, dando, então, garantias para que esta criança fique com a família e, juntos, consigam enfrentar adversidade, superar a pobreza e conquistar novos direitos. 

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