Beto Almeida: Obama, Dilma e o exemplo de Tancredo
Foi um ultraje, um abuso, um desrespeito total ao povo brasileiro o fato de Obama ter usado o território brasileiro, e mais precisamente as dependências do Palácio do Planalto, durante audiência com a Presidenta Dilma, para dar as ordens de ataque com mísseis à Líbia! Não merece, em absoluto, o Prêmio Nobel da Paz, mas o da guerra!
por Beto Almeida*
Mas, o episódio, mais um para a coleção de atitudes desrespeitosas com o povo brasileiro que dirigentes dos EUA praticaram - a mais grave de todas o Golpe de 1964, organizado a partir da Casa Branca que o pop star não mencionou - nos faz reviver um outro episódio.Eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves fez um giro por diversos países para comunicar a nova fase da política no Brasil a partir de 1985. O primeiro visitado foi os Estados Unidos. Recebido por Ronald Reagan, que na época sustentava a criminosa agressão contra a Nicarágua por meio de sabotagens e de apoio a grupos terroristas chamados de “contras”, Tancredo ouve com paciência o presidente estadunidense discorrer sobre América Latina e, praticamente, solicitar ou assediar o apoio brasileiro contra a Nicarágua Sandinista, por ele chamada de “expansão comunista-terrorista na região”.
Mineirice e soberania
Reagan só mais tarde foi compreender qual é a manha dos mineiros. Aparentemente, pelo comportamento de Tancredo na reunião privada, Reagan foi iludido acreditando que o mineiro estaria de acordo com os absurdos intervencionistas e criminosos que os EUA estavam lançando contra a Nicarágua. E por desdobramento, desrespeitando o povo brasileiro também convocando o Brasil para uma guerra contra um país irmão, a Pátria de Sandino.
Pois Tancredo deixou a Casa Branca sem dizer palavra e dirigiu-se ao Congresso. Aí sim estava a caixa de ressonância de que precisava. Ao ser sabatinado por senadores e deputados, em meio a indagações protocolares, genéricas e as imbecilizantes de sempre, sem que ninguém lhe perguntasse, Tancredo declara em alto e bom som para surpresa de todos, inclusive de sua assessoria que sequer fora avisada: “o Brasil não vai admitir uma intervenção militar estrangeira na Nicarágua Sandinista!”
O embaixador norte-americano no Brasil, um afrodescendente, ficou pálido com o que ouviu, segundo relato do experimentado jornalista José Augusto Ribeiro, assessor de imprensa de Tancredo, que também só naquele instante tomava conhecimento da postura do presidente brasileiro recém-eleito em defesa da autodeterminação dos povos, e, concretamente, em defesa do direito da Nicarágua de escolher seu modelo político soberanamente, reconhecendo seu sagrado exercício de independência.
Fidel e Tancredo
Imediatamente a declaração corajosa e soberana de Tancredo Neves, no Congresso dos EUA, minutos após ter se reunido com o presidente Ronald Reagan que lhe fez a proposta indecente, ecoava mundo afora pelas agências de notícias. Minutos depois um despacho das agências noticiosas chegava às mãos de Fidel Castro, que estava à tribuna num Congresso Internacional Contra o Pagamento da Dívida Externa, em Havana, quando também havia acabado de advertir para o risco de uma intervenção militar norte-americana na Nicarágua. Fidel pára seu discurso, lê o telegrama com as declarações de Tancredo Neves e fulmina da tribuna: “Invadir a Nicarágua é relativamente fácil, quero ver invadir o Brasil de Tancredo Neves!”
Sabe-se que quando Obama foi interrompido por seu secretário à mesa de reunião com Dilma, ele deu a ordem de ataque que pode levar à morte milhares de civis líbios e destruir tudo o que foi construído pelo processo de transformações da Líbia. E, ato contínuo, teria comunicado sua decisão à Presidenta Dilma, como a querer apoio ou adesão ao ataque. Dilma, segundo os relatos, teria recusado e declarado “o Brasil é um país pacífico e não concordamos que a ação militar vá produzir os efeitos esperados”. Não aderiu. Mas não declarou publicamente.
Desrespeito ao povo brasileiro
Teria sido importante que Dilma, a exemplo do também mineiro Tancredo Neves, ecoasse esta declaração em cadeia de TV e rádio, enquanto Obama estivesse em território brasileiro. Era uma maneira de reprovar publicamente a abusiva atitude de Obama de usar o território brasileiro, em visita oficial, para determinar um ataque mortal contra um país com o qual o Brasil tem relações normais, incluindo a participação de empresas, técnicos e produtos no processo de transformação que levou a Líbia a ter o mais elevado Índice de Desenvolvimento Humano da África.
Aliás, envolto em profundo simbolismo e em sintonia histórica com as declarações de Tancredo Neves está a recusa de Lula a comparecer ao almoço com Obama. Talvez esteja no gesto de Lula o que verdadeiramente Dilma e o Itamaraty queriam ou deviam dizer.
Sabemos que os primeiros mísseis lançados contra Trípoli destruíram um hospital e mataram 48 pessoas, inclusive crianças. As agências de notícias controladas pela indústria bélica e pelo poder petroleiro com sanguinária voracidade pelo óleo negro líbio continuam a mentir, agora dizendo que nenhum alvo civil foi atingido. Isto não está autorizado pela Resolução 1973 da ONU. É terrorismo pura e simplesmente!
Por isso Brasil, Rússia, China, Índia e Alemanha abstiveram-se, provavelmente sabendo das extrapolações criminosas - já preparadas há tempo - dos termos da Resolução para apoiar a contra-revolução. O precedente é gravíssimo e pode ser aplicado até mesmo contra o próprio Brasil ou qualquer país que tenha robustas riquezas energéticas. Com a quantidade de agentes de serviços de informação que atuam no Brasil disfarçados de ongueiros, conforme denunciam autoridades brasileiras, é o caso de atentar para o perigoso precedente aberto pela decisão da ONU.
Tancredo mandou fechar base militar dos EUA no Brasil
Num dia em que até ministros de estado brasileiros foram bruscamente revistados por seguranças de Obama, o exemplo da sabedoria de Tancredo recobra atualidade e vitalidade. Foi também Tancredo que, como primeiro-ministro, mandou fechar uma Base Militar que os EUA tinham no arquipélago de Fernando Noronha. Porém, Tancredo não fez declarações, apenas consultou as forças armadas no último dia do prazo para a renovação do contrato para a permanência da instalação militar estadunidense, e, mandou publicar o decreto determinando a retirada do dispositivo estrangeiro no Diário Oficial.
Com isso retirou o espaço e tempo de manobra dos vassalos sempre postos a defender os interesses da metrópole contra nosso próprio povo. Só no dia seguinte a opinião pública veio a saber do episódio, também relatado por José Augusto Ribeiro. Tancredo foi insistentemente indagado pelos jornalistas se iria normalizar as relações com Cuba, um modo de conflitá-lo com setores militares. Tancredo respondia com gargalhadas bem humoradas: “Mandei fechar uma base militar dos EUA e ninguém nunca me perguntou nada sobre isto. Mas, agora, só querem saber de Cuba, Cuba, Cuba”.
Se bem já não estamos mais na etapa em que um chanceler brasileiro chegava a agachar-se para retirar os sapatos em obediência a um guardinha de alfândega nos EUA, há sinais confusos sobre a necessária e imperativa continuidade, com mais consolidação e audácia, da política externa elaborada e praticada durante o governo Lula.
Seja porque todas as sanções ou ações militares delas decorrentes que os EUA arrancam no grito do Conselho de Segurança da ONU jamais deixaram de ser, de verdade, nada menos que agressões armadas contra povos e governos que têm posição de independência em relação à Casa Branca. As mais recentes destas sanções resultaram em destruição e morte na Yugoslávia, no Iraque, no Panamá, no Afeganistão e, agora, recém começada, na Líbia, prevendo-se a demolição de toda uma infra-estrutura que levou a Líbia a superar o atrasadíssimo regime monárquico e passar do tribalismo à construção de uma experiência socialista, ainda longe de ser alcançada.
Demolição do estado Líbio
Mas, é emblemático o fato de que os primeiros bombardeios lançados de porta-aviões dos EUA sobre Trípoli tenham demolido um hospital público, uma das conquistas deste processo de transformações, que também inclui um avançado sistema público de educação, canais de irrigação, indústria petroleira estatal, alvos que, demolidos, podem fazer o país recuar no tempo socio-economico. Aliás, está claro porque se levanta a bandeira da monarquia hoje por lá, com o apoio do Pentágono e da máquina macabra da OTAN.
Com toda certeza, o Brasil tem uma experiência histórica que nos anima a dizer que tem faltado mais protagonismo ao Itamaraty na crise Líbia, como indicamos em artigo anterior. Vale lembrar, por exemplo, que Vargas, intimado pelos EUA, recusou-se a colocar o Brasil na Guerra da Coréia. Em Angola, o Brasil apoiou o governo de Agostinho Neto, do MPLA, sendo o primeiro país a reconhecer a Independência da ex-colônia portuguesa.
A agressão à Líbia não passa de uma guerra de rapina do petróleo e numa ação para intimidar todo o processo de libertação política do mundo árabe, sempre cuidando de proteger os interesses dos EUA na região, como se vê na hipocrisia contida no apoio descarado de Hillary Clinton à invasão militar da Arábia Saudita ao Bahrein.
O Brasil construiu uma política externa que lhe rendeu prestígio e autoridade mundial. Não pode retroceder e aparecer associado ou até mesmo passivo diante de monstruosas maquinações midiáticas e bélicas para sustentar uma política neocolonialista, como agora neste criminoso ataque contra a Líbia.
Quando a Presidenta Dilma iniciou sua campanha eleitoral por Minas Gerais, exatamente com um gesto emblemático de depositar flores no túmulo de Tancredo Neves, saudamos a escolha da iniciativa. Com a esperança de que muitos dos ensinamentos deixados pelo estadista mineiro ajudem a iluminá-la nas horas mais difíceis. E a pronunciar o que o gesto de Lula afirmou.
* Jornalista, Membro da Junta Diretiva da Telesur.
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